Impermanências
Os
últimos anos trouxeram a fotografia para um lugar de destaque nas
artes, o que fez com que seu campo de abrangência aumentasse
consideravelmente. Ainda assim alguns artistas continuam a falar de
poucos, todavia primordiais, assuntos.
Os
trabalhos de Marcia Gadioli que compõem essa exposição se
articulam dessa maneira. Assim como a paisagem urbana e suas
configurações se alteram tão céleres que nem conseguimos criar
uma identificação, uma relação de pertencimento ao espaço,
devido à uma uniformização dessa mesma paisagem. A única coisa
perene parece ser essa nossa sensação de deslocamento, de
inadequação.
A
serie Containeres enfatiza essa rapidez de
mudanças, de
configurações. Além de uma obvia relação urbana, seja através
dos empilhamentos seja nas “implantações”, que se assemelham
aos condomínios verticais que se espalham nos centros urbanos e
renegam o entorno onde estão inseridos, há outra menos clara: os
containeres são símbolos onipresentes de um mundo globalizado; as
paisagens mutantes que eles formam, as quais Márcia congela em seus
registros, podem estar em qualquer lugar; Dubai, Melbourne,
Rotterdam, São Paulo.
Com um
caráter completamente diverso a série Paisagens,
inclusive
pela técnica que utiliza a fotografia analógica PB em oposição ao
digital colorido, também fala de urbanidade mas nesta, e
acertadamente, a técnica analógica dá uma densidade quase palpável
as camadas sobrepostas do que reconhecemos como um horizonte urbano e
que parecem prestes a se desfazer como nossas efêmeras lembranças.
…
Paradoxalmente,
Márcia utiliza algo abstrato, os containeres, para falar-nos de algo
concreto, o que seja, os centros urbanos e a uniformização advinda
da globalização. Em contraponto, na série Paisagens,
um
tema essencialmente concreto, a cidade e seus horizontes, estão à
ponto de se desfazer, evanescer, conduzindo-nos ao estranhamento, à
algo que não reconhecemos de pronto.
Somos
levados a concluir que a artista tem nas cidades o seu tema
principal. Não. Isto é apenas um veículo, um meio de expressão,
para o que trespassa sua produção: a memória.
…
Porque
há sempre um fim, um the end, para tudo? A questão nem seria esse
fim em si mas, primordialmente, o pensar a finitude.
A
série de quadros de parafina exemplifica de maneira singela esse
magnifico artificio de nossa evolução que é a memória.
Através
de imagens de jornais ela retém alguns dos milhares de registros que
tentam dar a dimensão de nosso mundo. Similarmente, essas imagens
sugadas de jornais que, pelo seu próprio caráter, tendem a ser
esquecidas assim que sai a próxima edição, ao mesmo tempo que
fixam em um suporte seu conteúdo não tem uma clareza, uma nitidez,
que permita a cada um de nós considera-la uma memória, mas sim uma
vaga lembrança. Dessa fraqueza surge sua força: tais imagens
incompletas permitem a construção de narrativas sempre novas porque
assim se fazem todas as vezes que as olhamos.
…
Afortunadamente
esta exposição se faz em um lugar como Paraty. Menos por sua
urbanidade conservada no centro histórico e mais por algo que não
nos damos conta imediatamente que são as pedras gastas de suas ruas.
São elas, mais do que as construções, que nos falam de quem
caminhou aqui por tantas vezes que sua aspereza tornou-se algo
polido, suavizado. São elas que nos lembram que nossas existências,
ainda que esqueçamos até mesmo aquilo ou aqueles que são caros
para nós, ficam para além de nós, além dessas nossas
impermanências.
Marcelo
Salles
crítico
independente/curador da Casa Contemporânea-SP